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Foto do escritorArtur Monteiro

Futuros primitivos e o nosso re-encantar


Dançarino no festival do Monastério de Hemis. Festival anual dedicado ao Lord Padmasambhava. Práticas consideradas sagradas de conexão com o divino. Foto: Monteiro, 2022.


Recentemente fui convidado a pensar, escrever e propor discussões sobre o futuro e como poderia ser possível pensar sua conexão com o passado. Afinal onde estamos? Como é possível pensar rotas de fugas das múltiplas crises pelas quais estamos passando e como elas influenciam em si nossa própria forma de agir e de estar no mundo. É fato que devemos mudar nossa maneira individual e coletiva de sermos e de estarmos no mundo. Mas como é possível fazermos isso? Antes de mudanças concretas e materiais, creio ser necessário passarmos por profundas reflexões sobre como chegamos aqui. Após pensamentos e reflexões coletivas, com minha companheira e outros, gostaria de compartilhar esses pensamentos que se fazem pontuais e preliminares ainda.


Futuros primitivos


Vindo de uma tradição acadêmica social, tendo a assimilar o tema do futuro a partir de uma perspectiva marxista baseada em dicotomias que o capitalismo carrega em si: coletivo/individual; acumulação/distribuição; isolamento/integração. Perceber o futuro neste sentido, me lembra no papel "O fim da história" de Francis Fukuyama (1989), no qual ele explora a ideia de que, com o fim da guerra fria, a história teria terminado devido ao triunfo do capitalismo sobre o socialismo, e suas implicações nos campos subjetivas e coletivos - individualismo, exploração, privatização... Os valores e padrões democráticos ocidentais percebidos como metas a serem buscadas, como um farol do chamado desenvolvimento. De uma perspectiva mais ampla, o modo de ser, de ver e de ser visto. Tal fato tem em seu cerne várias implicações na percepção subjetiva da mente e como nós, pessoal e coletivamente, entendemos o significado da escolha de ser diferente/desviante e como podemos aceitar diversas formas de projetar e construir o futuro. Há, assim, um único modo de estar e perseguir a existência no mundo, o ideal capitalista, e este está nos levando ao fracasso.

Uma vez que as implicações das mudanças climáticas estão se somando a um mundo que já enfrenta múltiplas crises, a imagem cnocreta do fim do mundo cresce frente ao imaginário global. Poderosas inundações no Paquistão e na Alemanha, deslizamentos de terra no Brasil e no Equador, secas alarmantes na Califórnia e na Austrália, etc... As imagens da mudança climática são mais fortes em nossas vidas, abarcando também campos subjetivos da prática humana - a presença do fim do mundo está próxima. Estamos próximos de não sermos capazes de perceber as consequências de seus impactos por diferentes perspectivas, uma vez que o capitalismo tem exerce grandes pressão sobre nossa diversidade coletiva e individual –nos pasteurizar nossos sonhos, desejos e formas de compreender o mundo. Mata nossas cosmovisões.

Ao reconhecer a chegada do fim do mundo, a sociedade ocidental nunca esteve tão próxima das populações indígenas. Nas Américas, por exemplo, as populações indígenas estão enfrentando o apocalipse desde a chegada dos europeus, que nunca pararam de cercar suas terras, explorar seus corpos e recursos e condenar suas vidas. As populações indígenas, melhor do que ninguém, sabem enfrentar o fim, adiando-o por diversas práticas comunitárias. Além de destruir territórios e culturas, a expansão acelerada do capitalismo, também está destruindo as formas de perceber o mundo. Permitir a expansão das práticas capitalistas como são, é permitir o crescimento das necro-políticas e também, como explorado por Boaventura de Souza Santos em suas "Epistemologias do Sul" (2009), conduzir diferentes tipos de epistemicídio no mundo, a matança de cosmovisões e formas de ver o mundo. Essas cosmovisões, em sua perspectiva, poderiam trazer soluções que a sociedade ocidental não tem as ferramentas ou o repertório cognitivo para sondar apropriadamente.

Como discutido por Silvia Federeci, em sua "Re-Cantando o Mundo: Feminismo e Política dos Comuns" (2018), um aspecto chave do capitalismo para sua expansão, é a despossessão dos bens e até mesmo dos corpos das pessoas e também de suas práticas comunitárias. Privar a população do sentimento de pertencimento, de sua identidade, de sua esperança e até mesmo de suas memórias. Não ter uma comunidade ou lembranças é não ter uma história. Como exemplo ela aponta que, se a única sensação de segurança que se tem é proporcionada pela segurança dada por um salário mensal, então nossas práticas sociais e, portanto, a esperança na vida e até mesmo nossa liberdade, está condenada - como estão realmente condenadas no mundo ocidental, dito desenvolvido. Em muitos países do sul, práticas comunitárias ainda são fortes o suficiente para apoiar a vida das pessoas, mesmo nos momentos mais sombrios de suas vidas. Para isso, é importante ressaltar práticas de resistência das populações tradicionais sul-americanas, baseadas no conceito de "buen vivir" (espanhol para "viver bem"). Segundo Alberto Acosta em seu livro " El Buen Vivir: Sumak Kawsay, una oportunidad para imaginar otro mundo" (2012) este é um conceito chave que poderia resgatar conceitos antigos que poderiam nos ajudar no tão necessário salto à frente - tais como práticas comunitárias, os direitos da natureza e outras formas de produção, consumo e distribuição de bens e serviços. Afinal tudo é de todos.

Outra anedota da importância do conhecimento tradicional para melhorias urgentes que precisamos experimentar também vem da América do Sul. O líder indígena, xamã, filósofo e roteirista Davi Kopenawa descreve em seu livro "A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami " (2013) como a cosmovisão de seu povo e como suas práticas são chave para evitar que o céu caia sobre nós - significando em uma visão muito simplista o fim do mundo. Alguns povos originários do Brasil, têm esta prática de realizar cerimônias e práticas comunitárias a fim de evitar o fim dos tempos. Ao fazer isso, eles não apenas criam conexão com os outros e com a terra, respeitando-a - eles também criam o pertencimento, o elo e, assim, vida. Ao criar um presente de esperança, eles criam possibilidades de futuro. Eles se tornam atores na criação de possibilidades, eles estão de fato criando suas maneiras de viver de forma prática, cognitiva e cósmica. Ailton Krenak em seu "Idéias para Adiar o Fim do Mundo" aponta uma série de pensamentos sobre como a sociedade ocidental construiu castelos baseados em percepções errôneas do mundo e como todos nós devemos adotar práticas de esperança cultural não apenas para criar sensos de pertencimento e de identidade, mas o mais importante da esperança de que podemos, todos, criar nossas próprias histórias. Por exemplo, a arte e o pertencimento, são ferramentas contra a crescente depressão imposta pelo capitalismo unidirecional e nos permitem espiar para além da cerca e nos perguntar "e se...".


Re-encantando a nós mesmos


O conceito seminal de Desencantamento do Mundo de Weber, fomentado pela racionalização e o aperfeiçoamento técnico da sociedade moderna, levando as culturas muito além da perspectiva mágica de nossa existência comum na Terra, aponta para um mundo onde nenhum aspecto místico é mais necessário - exemplo falar com espíritos e dançar para que plantações se desenvolvam. Neste sentido, não são mais necessários rituais, canções e danças, não se pratica mais a conexão. Silvia Federici (2012) propõe o oposto. Ela propõe que devemos voltar atrás, primitivos, místicos e procurando encantar para visualizar outras formas e permitir que outras vozes, outras canções e cores surjam e propor novas formas para o futuro. Encantar vem do verbo latino cantare (cantar), sendo ele a base das práticas que nos conectam entre nós, e com a própria terra. Não apenas cantando per si só, mas dançando, pintando e outras práticas que tragam e permitam o lirismo no mundo.

Além de propor a arte e as práticas comunitárias como formas de re/imaginar e re/produzir modos de viver e de ser, também são necessárias práticas artísticas e afetivas para que possamos re/criar memórias coletivas e individuais. Criar novas memórias de pertencimento também abre caminhos para um futuro melhor e mais inclusivo. Somente permitindo-nos criar arte e afeto em um mundo cinzento, ao fazer parte, poderíamos fomentar a cor e novas narrativas pessoais. Tais práticas são pequenas janelas para respirar que, quando abertas juntas, poderiam nos ajudar a sonhar juntos nosso futuro.

Pensando pelo fim da história idealizadas pelo triunfo do capitalismo no final dos anos 80, e seu posterior crescimento e acentuação recente, eu gostaria de sugerir uma reflexão que vai no sentido contrário. Para podermos ver uma saída para o beco sem saída que estamos agora, é fundamental que acreditemos e que recuemos em nossas referências de práticas, e de fé e que sejamos coletivamente corajosos o suficiente para criar e propor maneiras de pensarmos a nós mesmos e como queremos seguir em conjunto. Somente fazendo coletivamente poderíamos fazer sozinhos, ajudando uns aos outros nesta travessia.

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